14.5.05

TRAIDORES? - Foi-se o tempo de tradutores de fim-de-semana e horas vagas, tradutores que dividiam a tarefa da versão com afazeres de autoria, ciência ou comércio. Se ainda contamos com a tradução anônima, essa já se torna exceção no campo da literatura. A época nos ensina a celebrar e vituperar nossos tradutores como fossem autores locais. Aos nossos olhos contemporâneos, traduzir não é apenas trazer a público obras de outros tempos e magnitudes. A tradução tornou-se também o meio com que fazemos nossa língua falar essas obras e, assim, erguer-se às alturas daquilo que ela recebe. Nada se diz de novo até aqui. Não são poucos os que defendem a tradução sob argumentos como o do enriquecimento cultural e lingüístico que ela nos propicia.
Suponho, contudo, que poucos dentre os que defendem o "enriquecimento da língua e da cultura" sejam adeptos da "supremacia lingüística e cultural". Essa dedução é relativamente óbvia, já que não se tem notícia de polêmicas em torno do que alguns poderiam objetar como preconceito grosseiro, que encontra raízes profundas nas antigas justificativas filantrópicas da dominação econômica e cultural. Não se configurando a oposição mais lógica (diga-se de passagem, de forte presença na formação de outros saberes), é legítimo que investiguemos as idiossincrasias de nossa atividade tradutória, que por enquanto assinalamos em relação ao último momento de nossas letras.
Dada a mediocridade da pedagogia no que toca ao ensino de língua e literatura, o Movimento Concreto será lembrado por um repertório tecnicista que não distingue o trabalho literário do publicitário. Como é tradição didática não dizer o que interessa, dificilmente saberemos de uma importante conseqüência do proselitismo da vanguarda, sem dúvida a evidência maior do esvaziamento consentido de suas palavras de ordem em prol de uma literatura digna da última palavra do Contemporâneo. Se o Concretismo "superou" alguma coisa em sua curta e pretensiosa carreira, essa "superação" ocorreu num campo pouco explorado pela crítica - o da autoria. De fato, a recepção da matéria estrangeira teve até aquele presente momento formas basicamente imitativas, presentes de um modo quase que homogêneo no período que cobre dos primeiros românticos ao modernismo de 22, funcionando retroativamente em relação àqueles que jamais conheceram tais complexos. Imitar um poema de Hugo, traduzir-lhe as imagens e a oratória nunca constituiu problema para Castro Alves; o "mal-do-século" (temos os atestados de óbito?) jamais foi entendido como arremedo retórico para mortes menos românticas, porém muito tropicais; o indianismo e romantismo tão brasileiros nunca foram reduzidos à compilação de modismos parisienses. De certa forma, sempre traduzimos - e no entanto, tornou-se descabido escrever nos dias de hoje como Tom Wolfe ou Marianne Moore. Hoje escrevemos por eles - e com alguma sorte somos (mal) pagos por isso.
Foi-se o tempo da arte do empréstimo descompromissado, da técnica literária que, nos bons momentos, se viu livre de uma utilização padronizada e serviu para a formação de questões locais. Aliás, o próprio deslocamento do debate literário, que encontrou novo centro na técnica, favorece a estagnação programática, como o atesta a simples vontade - simples, porém absurda - de uma metáfora continuada: falar de técnica sem tecnologia revela muito da condição servil com que polidamente nos regozijamos. O elogio da tradução, escrito por Haroldo de Campos em 85 sob a égide de uma "literatura pós-utópica", atingia sua mais perfeita realização no "esforço monumental" de sua Ilíada. Com ela, Haroldo se igualava a Odorico Mendes, pioneiro na longa viagem que a épica grega teve de seguir até a costa brasileira, onde feitos notáveis só conhecem fracasso e esquecimento. Sem negar a tradição funesta, sua ambição de "helenizar o português", literariamente tão notável, coincide com a maestria na arte da paródia, ponto em que poderíamos igualá-lo à "proletarização da presidência" (aliás, por ele celebrada em poema de circunstância) não fosse a literatura assunto ainda imponente no balancinho do pensamento brasileiro. Atento ao momento, o projeto que fundamenta sua Ilíada pertence às "formas do progresso" que temos conhecido e dizem hipocrisia mediante nomes que preferimos omitir sem deixar de enumerar sinônimos belos e civilizados, como livre-arbítrio, saber, desenvolvimento, bem coletivo, identidade e alteridade.
Não nos restando outra alternativa senão a suposta experiência e o suposto pensamento de outrem, nossos tradutores vertem o mundo como fossem investidos da velha posição diplomática que caracteriza o regimento. O tédio que a ironia (indispensável ao cargo) nos causa não é fortuito: seu flerte com a traição não passa de protocolo risível. Haja vista a situação em que seu ofício se encontra, sabemos que nossos tradutores jamais encontrariam meios de discernir traídos e traidores.


TRAIDORES? - Foi-se o tempo de tradutores de fim-de-semana e horas vagas, tradutores que dividiam a tarefa da versão com afazeres de autoria, ciência ou comércio. Se ainda contamos com a tradução anônima, essa já se torna exceção no campo da literatura. A época nos ensina a celebrar e vituperar nossos tradutores como fossem autores locais. Aos nossos olhos contemporâneos, traduzir não é apenas trazer a público obras de outros tempos e magnitudes. A tradução tornou-se também o meio com que fazemos nossa língua falar essas obras e, assim, erguer-se às alturas daquilo que ela recebe. Nada se diz de novo até aqui. Não são poucos os que defendem a tradução sob argumentos como o do enriquecimento cultural e lingüístico que ela nos propicia.
Suponho, contudo, que poucos dentre os que defendem o "enriquecimento da língua e da cultura" sejam adeptos da "supremacia lingüística e cultural". Essa dedução é relativamente óbvia, já que não se tem notícia de polêmicas em torno do que alguns poderiam objetar como preconceito grosseiro, que encontra raízes profundas nas antigas justificativas filantrópicas da dominação econômica e cultural. Não se configurando a oposição mais lógica (diga-se de passagem, de forte presença na formação de outros saberes), é legítimo que investiguemos as idiossincrasias de nossa atividade tradutória, que por enquanto assinalamos em relação ao último momento de nossas letras.
Dada a mediocridade da pedagogia no que toca ao ensino de língua e literatura, o Movimento Concreto será lembrado por um repertório tecnicista que não distingue o trabalho literário do publicitário. Como é tradição didática não dizer o que interessa, dificilmente saberemos de uma importante conseqüência do proselitismo da vanguarda, sem dúvida a evidência maior do esvaziamento consentido de suas palavras de ordem em prol de uma literatura digna da última palavra do Contemporâneo. Se o Concretismo "superou" alguma coisa em sua curta e pretensiosa carreira, essa "superação" ocorreu num campo pouco explorado pela crítica - o da autoria. De fato, a recepção da matéria estrangeira teve até aquele presente momento formas basicamente imitativas, presentes de um modo quase que homogêneo no período que cobre dos primeiros românticos ao modernismo de 22, funcionando retroativamente em relação àqueles que jamais conheceram tais complexos. Imitar um poema de Hugo, traduzir-lhe as imagens e a oratória nunca constituiu problema para Castro Alves; o "mal-do-século" (temos os atestados de óbito?) jamais foi entendido como arremedo retórico para mortes menos românticas, porém muito tropicais; o indianismo e romantismo tão brasileiros nunca foram reduzidos à compilação de modismos parisienses. De certa forma, sempre traduzimos - e no entanto, tornou-se descabido escrever nos dias de hoje como Tom Wolfe ou Marianne Moore. Hoje escrevemos por eles - e com alguma sorte somos (mal) pagos por isso.
Foi-se o tempo da arte do empréstimo descompromissado, da técnica literária que, nos bons momentos, se viu livre de uma utilização padronizada e serviu para a formação de questões locais. Aliás, o próprio deslocamento do debate literário, que encontrou novo centro na técnica, favorece a estagnação programática, como o atesta a simples vontade - simples, porém absurda - de uma metáfora continuada: falar de técnica sem tecnologia revela muito da condição servil com que polidamente nos regozijamos. O elogio da tradução, escrito por Haroldo de Campos em 85 sob a égide de uma "literatura pós-utópica", atingia sua mais perfeita realização no "esforço monumental" de sua Ilíada. Com ela, Haroldo se igualava a Odorico Mendes, pioneiro na longa viagem que a épica grega teve de seguir até a costa brasileira, onde feitos notáveis só conhecem fracasso e esquecimento. Sem negar a tradição funesta, sua ambição de "helenizar o português", literariamente tão notável, coincide com a maestria na arte da paródia, ponto em que poderíamos igualá-lo à "proletarização da presidência" (aliás, por ele celebrada em poema de circunstância) não fosse a literatura assunto ainda imponente no balancinho do pensamento brasileiro. Atento ao momento, o projeto que fundamenta sua Ilíada pertence às "formas do progresso" que temos conhecido e dizem hipocrisia mediante nomes que preferimos omitir sem deixar de enumerar sinônimos belos e civilizados, como livre-arbítrio, saber, desenvolvimento, bem coletivo, identidade e alteridade.
Não nos restando outra alternativa senão a suposta experiência e o suposto pensamento de outrem, nossos tradutores vertem o mundo como fossem investidos da velha posição diplomática que caracteriza o regimento. O tédio que a ironia (indispensável ao cargo) nos causa não é fortuito: seu flerte com a traição não passa de protocolo risível. Haja vista a situação em que seu ofício se encontra, sabemos que nossos tradutores jamais encontrariam meios de discernir traídos e traidores.