7.11.05
APESAR DE TUDO, CARLO GINZBURG E UM INCIDENTE, JÁ EM SÃO PAULO - Embora tenha comprado essas maravilhas, eu estava mesmo ocupado com o Carlo Ginzburg e seus Olhos de Madeira. Sempre que eu leio Carlo Ginzburg, fico meio perdido entre fatos e fotos. Talvez porque eu não tenha entendido muita coisa de um livrinho dele sobre o Piero de la Francesca, no qual uma genealogia de mecenas italianos era determinante para as anomalias de representação simbólica. No entanto, ontem eu estava saindo do metrô Sé com aquelas reflexões morais sobre a distância, que o Ginzburg sempre recupera pelo método ab ovo de investigação histórica. O que é matar andorinhas e mandarins?
Para falar de "compaixão e terror", efeitos da tragédia, Aristóteles salienta que os acontecimentos próprios a essas paixões devem ocorrer não entre inimigos ou desconhecidos, mas entre pessoas de um círculo afim e igual aos nossos, formados por pessoas como as presentes, ou seja, nunca separadas pelo tempo. Observando um tempo em que as relações humanas se davam "face a face", Ginzburg caminha de encontro a Diderot, que para falar de remorso e crime propõe a seu assassino uma viagem à China:
Concordamos em que a distância em relação aos lugares e ao tempo talvez atenue mais ou menos todos os sentimentos, toda sorte de consciência, mesmo a do crime. O assassino, transportado para as terras da China, está longe demais para perceber o cadáver que deixou sangrando na beira do Sena. O remorso talvez nasça menos do horror de si do que do medo dos outros; menos da vergonha da ação do que da censura e do castigo que se seguiram se ela fosse descoberta.
Ginzburg ainda mostra que Diderot teria formulado seu exemplo (base de um causo corrente na literatura francesa sobre certo mandarim chinês, a cuja morte se atribuía indiferença moral e benefício do assassino) a partir de umas experiências morais excogitadas em outras oportunidades, como a "Carta sobre os cegos, para uso dos que enxergam", onde a "privação da vista" é comparada ao efeito de indiferença produzido pela "distância ou pequenez dos objetos". Sem jamais ter papeado com o Jatobá e o Senhor Quartz em Ipanema, Diderot supõe que os cegos "careçam de humanidade":
A tal ponto nossas virtudes dependem de nossa maneira de sentir e do grau que em que as coisas externas nos afetam! Por isso não duvido que, não fosse o temor ao castigo, muita gente teria menos dó de matar um homem à distância em que o vissem do tamanho de uma andorinha do que de matar um boi com as próprias mãos.
Sem me alongar no ensaio, que fala de distância relacionada a indiferença, compaixão e reconhecimento do outro, o caso é que eu saía do metrô com esses pensamentos e ia em direção à Casa Vitale. Estando a loja fechada, voltei imediatamente para o metrô, no que imagino ter gasto uns cinco minutos, não mais que isso. Foi o tempo de encontrar, na volta, uma multidão em torno de um carro funerário bem na boca do metrô. Fui me embrenhando entre os populares para ver o que estava acontecendo e vi um corpo estendido, sendo coberto e carregado por agentes funerários para dentro do rabecão. Suponho que já estivesse morto da hora em que saí do metrô, caso contrário é bom elogiar a rapidez e a eficiência com que esses funcionários públicos fazem seu trabalho. Não - é mais provável que ele estivesse esperando (alguém diria, sem muita pressa) ao lado dos caras que vendem passe e tapioca. Fosse andorinha, teria sido reaproveitado nos churrasquinhos. Fosse mandarim, estaria nu. Diante desses verossímeis, é bom também esquecer as tragédias. Com distância e indiferença afetamos a leveza do estilo.
APESAR DE TUDO, CARLO GINZBURG E UM INCIDENTE, JÁ EM SÃO PAULO - Embora tenha comprado essas maravilhas, eu estava mesmo ocupado com o Carlo Ginzburg e seus Olhos de Madeira. Sempre que eu leio Carlo Ginzburg, fico meio perdido entre fatos e fotos. Talvez porque eu não tenha entendido muita coisa de um livrinho dele sobre o Piero de la Francesca, no qual uma genealogia de mecenas italianos era determinante para as anomalias de representação simbólica. No entanto, ontem eu estava saindo do metrô Sé com aquelas reflexões morais sobre a distância, que o Ginzburg sempre recupera pelo método ab ovo de investigação histórica. O que é matar andorinhas e mandarins?
Para falar de "compaixão e terror", efeitos da tragédia, Aristóteles salienta que os acontecimentos próprios a essas paixões devem ocorrer não entre inimigos ou desconhecidos, mas entre pessoas de um círculo afim e igual aos nossos, formados por pessoas como as presentes, ou seja, nunca separadas pelo tempo. Observando um tempo em que as relações humanas se davam "face a face", Ginzburg caminha de encontro a Diderot, que para falar de remorso e crime propõe a seu assassino uma viagem à China:
Concordamos em que a distância em relação aos lugares e ao tempo talvez atenue mais ou menos todos os sentimentos, toda sorte de consciência, mesmo a do crime. O assassino, transportado para as terras da China, está longe demais para perceber o cadáver que deixou sangrando na beira do Sena. O remorso talvez nasça menos do horror de si do que do medo dos outros; menos da vergonha da ação do que da censura e do castigo que se seguiram se ela fosse descoberta.
Ginzburg ainda mostra que Diderot teria formulado seu exemplo (base de um causo corrente na literatura francesa sobre certo mandarim chinês, a cuja morte se atribuía indiferença moral e benefício do assassino) a partir de umas experiências morais excogitadas em outras oportunidades, como a "Carta sobre os cegos, para uso dos que enxergam", onde a "privação da vista" é comparada ao efeito de indiferença produzido pela "distância ou pequenez dos objetos". Sem jamais ter papeado com o Jatobá e o Senhor Quartz em Ipanema, Diderot supõe que os cegos "careçam de humanidade":
A tal ponto nossas virtudes dependem de nossa maneira de sentir e do grau que em que as coisas externas nos afetam! Por isso não duvido que, não fosse o temor ao castigo, muita gente teria menos dó de matar um homem à distância em que o vissem do tamanho de uma andorinha do que de matar um boi com as próprias mãos.
Sem me alongar no ensaio, que fala de distância relacionada a indiferença, compaixão e reconhecimento do outro, o caso é que eu saía do metrô com esses pensamentos e ia em direção à Casa Vitale. Estando a loja fechada, voltei imediatamente para o metrô, no que imagino ter gasto uns cinco minutos, não mais que isso. Foi o tempo de encontrar, na volta, uma multidão em torno de um carro funerário bem na boca do metrô. Fui me embrenhando entre os populares para ver o que estava acontecendo e vi um corpo estendido, sendo coberto e carregado por agentes funerários para dentro do rabecão. Suponho que já estivesse morto da hora em que saí do metrô, caso contrário é bom elogiar a rapidez e a eficiência com que esses funcionários públicos fazem seu trabalho. Não - é mais provável que ele estivesse esperando (alguém diria, sem muita pressa) ao lado dos caras que vendem passe e tapioca. Fosse andorinha, teria sido reaproveitado nos churrasquinhos. Fosse mandarim, estaria nu. Diante desses verossímeis, é bom também esquecer as tragédias. Com distância e indiferença afetamos a leveza do estilo.
1 Comments:
UAU! Você leu o "Olhos de madeira" ...e sobreviveu?
Você subiu muito no meu conceito ( risos ).
Esse é um dos livro mais complexos que eu já li na vida. Dá um medo danado daquela erudição do Ginzburg. Lembro que, quando esse livro foi lançado no Brasil, a tia Laura foi incumbida de escrever uma resenha para o Jornal de Resenhas...ela demorou uns 3 meses para conseguir decodificar as referências todas. Isso a Laura, que conhece e estuda o Ginzburg desde criancinha, literalmente!
Bom, como você tá cansado de saber, eu sou louca por esse italianinho e era uma componente da "fila do gargarejo" no dia em que ele deu uma palestra lá na Hitória! Ô tempo bão em que a minha única preocupação era compreender o que era circularidade cultural e como ela atuava nas sociedades!
Hoje em dia eu tento aplicar o conceito de Ginzburg ao mundo acadêmico, mas tá ruim de achar um só nível cultural... que dirá vários em circularidade! (risos)
A gente vai se falando
Beijos
Ca
P.S. Manja aquele italiano que pagou uma pau para o meu projeto de mestrado? Então... o que ele gostou mais no meu trabalho é que eu uso muito o Ginzburg para ler o Guimarães Rosa o que, segundo ele, é super original! Ao que eu respondi: Ah, eu também acho, mas essa não é, definitivamente, a opinião dos professores das literaturas daqui! hehehe
Essa boquinha, muitas vezes, fala coisas que não sabe se deveria!
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