13.4.06

O BANQUETE (MEUS ESTUDOS DA GASTRONOMIA E DO TURISMO BRASILEIROS XII) - Eu precisava viajar até a faculdade. Os anos se passam e minhas perspectivas do campus e da cidade se transformam com eles. Naquela época, eu ainda não estava cansado. A cidade era, então, um acidente geográfico transponível, um país de negócios, crime e estatísticas, um ambiente feroz que eu atravessava diariamente para desembarcar em um mundo de tranqüilidade, em que os pensamentos, esquecidos de toda a violência, giravam com grande leveza e os amores lembravam uma província permissiva, por vezes doce e libertina, em que os olhares encontravam sua cara-metade por todos os lados.
Naquele dia, essas impressões ganhavam mais força pela incumbência que tinha, a de deixar em um farol, a poucas quadras da minha casa, uma cesta básica que meu pai havia recebido no trabalho. O farol era passagem obrigatória e, por conta disso, não pude declinar. Ficavam ali três malabaristas-mirins, às vezes vestidos de uniforme escolar, às vezes não. A rua em questão forma um cruzamento com uma grande avenida da cidade e é desabitada de comércio ou circulação de pedestres: à direita, um velho galpão de fábrica; à esquerda, o imenso espaço perdido - inteiro murado - de um viaduto que corre paralelo à rua, sobre a avenida. Como ela está sempre apinhada de carros e motos, nunca se tem uma boa perspectiva do todo. Mesmo os meninos não se aventuravam em suas micagens rua adentro: permaneciam sobre a faixa de pedestres e corriam logo que o farol abria para a outra faixa de pedestres do cruzamento. Aparentando uns 10, 12 anos cada um, supunha que poderia chamá-los para carregar a caixa em equipe.
Parei o carro sobre a calçada mais larga do lado esquerdo e buzinei para os meninos. Eles correram até o carro e, assim que viram a caixa, gritaram de um modo zombeteiro: aê! Ó o banquete!, o que me fez rir. Eu estava entregando a caixa para os meninos quando entendi a razão do grito. Detrás do muro, virando a esquina, uma horda de gente maltrapilha, mulheres, homens e muitas outras crianças avançava em nossa direção, visando diretamente à caixa. Primeiro, as crianças, que chegavam esbaforidas e examinavam o conteúdo da caixa; depois os adultos, que se atracavam com os menores e começavam a tirar da caixa os sacos de arroz, feijão, macarrão, farinha e açúcar, disputados a tapa. Enquanto duas mulheres gordas deitavam no chão pelo macarrão, um homem passava uma rasteira violenta no moleque que corria com o açúcar. Os três malabaristas usavam seus instrumentos para intimidar outras crianças, mas nada podiam contra grupos de assalto mais numerosos. As lutas eram tantas e tão particulares que seria impossível descrevê-las. Os pacotes passavam de mão em mão às custas de socos e pontapés - mas também mudavam de volume! O que me parecia ser farinha estourou na cara de pelo menos quatro moleques que, com os rostos embranquecidos, voltaram suas forças para uma lata de óleo que rolava sem dono pela rua. As mulheres já brigavam por outros problemas sobre o macarrão esmigalhado. Outro homem, dedicado aos sopapos na cabeça dos menores, já pisava em grãos de feijão.
Eu e o carro parecíamos invisíveis diante das disputas. No entanto, me ocorreu que, destruído o banquete, a fúria dos locais poderia se voltar contra mim. Por conta disso, corri para dentro do carro e dei a partida sem outros incômodos. Do espelho, ainda vi as últimas batalhas por embalagens um pouco mais resistentes. Mas o espetáculo da guerra fratricida já havia ensombrecido meus pensamentos e, como uma nuvem, atravessou comigo os portões do campus.

O BANQUETE (MEUS ESTUDOS DA GASTRONOMIA E DO TURISMO BRASILEIROS XII) - Eu precisava viajar até a faculdade. Os anos se passam e minhas perspectivas do campus e da cidade se transformam com eles. Naquela época, eu ainda não estava cansado. A cidade era, então, um acidente geográfico transponível, um país de negócios, crime e estatísticas, um ambiente feroz que eu atravessava diariamente para desembarcar em um mundo de tranqüilidade, em que os pensamentos, esquecidos de toda a violência, giravam com grande leveza e os amores lembravam uma província permissiva, por vezes doce e libertina, em que os olhares encontravam sua cara-metade por todos os lados.
Naquele dia, essas impressões ganhavam mais força pela incumbência que tinha, a de deixar em um farol, a poucas quadras da minha casa, uma cesta básica que meu pai havia recebido no trabalho. O farol era passagem obrigatória e, por conta disso, não pude declinar. Ficavam ali três malabaristas-mirins, às vezes vestidos de uniforme escolar, às vezes não. A rua em questão forma um cruzamento com uma grande avenida da cidade e é desabitada de comércio ou circulação de pedestres: à direita, um velho galpão de fábrica; à esquerda, o imenso espaço perdido - inteiro murado - de um viaduto que corre paralelo à rua, sobre a avenida. Como ela está sempre apinhada de carros e motos, nunca se tem uma boa perspectiva do todo. Mesmo os meninos não se aventuravam em suas micagens rua adentro: permaneciam sobre a faixa de pedestres e corriam logo que o farol abria para a outra faixa de pedestres do cruzamento. Aparentando uns 10, 12 anos cada um, supunha que poderia chamá-los para carregar a caixa em equipe.
Parei o carro sobre a calçada mais larga do lado esquerdo e buzinei para os meninos. Eles correram até o carro e, assim que viram a caixa, gritaram de um modo zombeteiro: aê! Ó o banquete!, o que me fez rir. Eu estava entregando a caixa para os meninos quando entendi a razão do grito. Detrás do muro, virando a esquina, uma horda de gente maltrapilha, mulheres, homens e muitas outras crianças avançava em nossa direção, visando diretamente à caixa. Primeiro, as crianças, que chegavam esbaforidas e examinavam o conteúdo da caixa; depois os adultos, que se atracavam com os menores e começavam a tirar da caixa os sacos de arroz, feijão, macarrão, farinha e açúcar, disputados a tapa. Enquanto duas mulheres gordas deitavam no chão pelo macarrão, um homem passava uma rasteira violenta no moleque que corria com o açúcar. Os três malabaristas usavam seus instrumentos para intimidar outras crianças, mas nada podiam contra grupos de assalto mais numerosos. As lutas eram tantas e tão particulares que seria impossível descrevê-las. Os pacotes passavam de mão em mão às custas de socos e pontapés - mas também mudavam de volume! O que me parecia ser farinha estourou na cara de pelo menos quatro moleques que, com os rostos embranquecidos, voltaram suas forças para uma lata de óleo que rolava sem dono pela rua. As mulheres já brigavam por outros problemas sobre o macarrão esmigalhado. Outro homem, dedicado aos sopapos na cabeça dos menores, já pisava em grãos de feijão.
Eu e o carro parecíamos invisíveis diante das disputas. No entanto, me ocorreu que, destruído o banquete, a fúria dos locais poderia se voltar contra mim. Por conta disso, corri para dentro do carro e dei a partida sem outros incômodos. Do espelho, ainda vi as últimas batalhas por embalagens um pouco mais resistentes. Mas o espetáculo da guerra fratricida já havia ensombrecido meus pensamentos e, como uma nuvem, atravessou comigo os portões do campus.

1 Comments:

At 9:30 AM, Blogger Camila Rodrigues said...

Pô, e eu que estava procurando aqueles posts tipo "sentimetais bregas" de Feliz Páscoa, acho essas coisas 100% mundo real!
Mas como eu estou a minha fase " sentimental brega", felz páscoa para vocÊ, nino...
Beijos
Ca

 

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